Por André Guerra – Amigos da Terra Brasil – para Rádio Mundo Real
O Brasil, assim como muitos outros países do mundo, está sendo inebriado por uma névoa de avanços, melhorias, conquistas e vitórias. Sem dúvida, isso é importante. Sem dúvida, muitas dessas conquistas não podiam mais esperar para se tornarem realidade. Sem dúvida, a tecnologia e o progresso aproximaram os distantes e possibilitaram impossíveis. Não é essa a questão. O fato é pensar: e os custos? O como? A que preço? À custa de quem? Sob qual mando? Através de qual lei? Para estabelecer qual ordem? Supondo qual futuro? Pensando em qual sociedade? Por meio de qual estatuto político?
Talvez nesse momento a questão não seja nos determos naquilo que está posto como afirmado e positivado sob os desígnios dos “avanços” e do “progresso”. Estamos avançando. Está bem. Deixamos como ponto pacífico. Mas avançando para onde? Estamos evoluindo, isso é certo. Recentemente uma bióloga me ensinou que a evolução dispensa qualquer juízo de valor. Ela não é moral. Ou seja, a evolução é um fato. Estamos evoluindo, porém, se para o bem ou para o mal, a História e historiadores que virão depois de nós é que dirá. Depois de nós quem? Do ser humano como espécie ou de grupos específicos como classe? Outra questão.
A verdade é que no presente estamos lidando não com o “nosso” futuro de forma genérica, estamos a cada momento também lidando com as possibilidades concretas e objetivas de escolher, especificamente, quem e a que preço poderá ou não ter um futuro. Ou seja, no presente estamos inventando o futuro e os futuros possíveis ou barrados na nossa História – ou arqueologia, quem sabe. Não podemos determinar ou controlar o futuro, isso parece certo; entretanto, podemos produzir e inventar o presente, o “nosso” presente, como indivíduo, grupo, coletivo, organização, comunidade, nação, sociedade ou espécie.
O que assistimos nesse triste vídeo-documentário “A Copa que o mundo perdeu em Porto Alegre”, produzido pelos Amigos da Terra Brasil, Coletivo Catarse e Comitê Popular da Copa Porto Alegre, em parceria com organizações e movimentos locais e nacionais é um episódio, um recorte, uma vírgula que conseguiu escapar das estatísticas para ganhar corpo, carne e sangue na singularidade dolorida de irmãos e irmãs, companheiros e companheiras de viagem. O que esse trabalho mostra não é a realidade, mas é o cotidiano de uma dezena de pessoas que não são o todo, mas sofrem um sofrimento que é compartilhado por uma infinidade de pessoas em cada um dos recantos de nossas cidades, estados, países e continentes. Ao ver isso parece difícil recusar a pergunta: o que estamos fazendo? Para o que estamos fazendo? Para quem estamos fazendo?
“Nosso endereço é descartável nesse Estado”
Nesse vídeo-documentário, em meio a um cenário de guerra, vemos estarrecidos a brutalidade com que casas numeradas vão sendo destruídas uma após a outra em nossas vilas de Porto Alegre. Isso não é um fato isolado[1] [2]. É contrastante no vídeo-documentário a delicadeza do homem que suavemente controla a brutalidade do trator colocando abaixo, não telhas e madeiras, não uma casa como objeto impessoal, mas sim o lar de uma família que naquele espaço, naquele território, construiu e referenciou a sua vida – não uma vida biológica e descartável que vive e morre indiferentemente –, mas uma vida como potência de viver, criar e construir realidades. Uma vida com paixão, sonhos, medos e ideais. Uma vida igual a de todo mundo, e justamente por ser igual, absolutamente diferente de qualquer outra.
No momento em que policiais federais fortemente armados e apropriadamente vestidos de preto dão cobertura aos burocratas que convenientemente usam a estupidez do sistema e das normas a favor de sua lamentável e não menos imbecil mesquinhez, estamos diante de um problema, não só de ordem política, mas estrutural.E é exatamente isso que a resistência da Copa do Mundo 2014 vem denunciar [3] [4]. Convivemos em nossas cidades com uma higienização de proporções inimagináveis. Evidentemente, elas não surgiram com a abertura da Copa do Mundo FIFA 2014 e infelizmente não irão embora com ela. Ela é uma prática que, isso sim, por um lado, foi fortemente acelerada com o oportunismo trazido pela Copa, e, por outro lado, por causa dela só agora ganhou visibilidade. A Copa é passageira, muitos queriam que ela não viesse[5], mas ela veio, mas da mesma forma ela se despedirá. Porém, irá para um outro lugar. E da mesma forma a FIFA e suas corporações vão passar por cima de condições e condicionantes, assim como fez no Brasil[6]. Ou será muito diferente? Eu não apostaria. Mas, independentemente disso, quem ganha com esse jogo? A especulação imobiliária e o poder corporativo sempre estão a postos diante do menor vacilo da resistência ou brecha que passou despercebida. Talvez como resposta a isso é que, desde 2013, a confluência de décadas de mobilizações vêm tomando não só às ruas do Brasil, mas escrevendo o que poderá ser um marco histórico para o país[7].
Os grandes avanços promovidos por todos os bens que a tecnologia e a produtividade puderam nos proporcionar, agora estão nos presenteando com os deleites de uma vida menos árdua, mas, por outro lado, escondendo de nós mesmos a crescente futilidade na qual está assentada a nossa vida coletiva e individual. Sintoma disso é que à mediada que vemos expandir incomensuravelmente as nossas possibilidades técnicas e tecnológicas, todas elas potencialmente instrumentos de grandiosidades jamais alcançadas na história da humanidade, também contemplamos uma expansão, quem sabe proporcional, dos reis e rainhas de nossos camarotes [8] [9]. O que a especulação imobiliária e as grandes transnacionais têm a ver com isso? Elas estão sofisticadamente alcançando, finalmente, a consolidação de estados dentro dos estados. Enquanto no centro deles desfrutamos as fantasias promovidas pelo Estado-corporação; às suas margens, o nosso mais fantástico aparato criminalizador, violento e opressor constrói um grande, eficiente e permanente Estado-exceção[10] [11] [12] [13] [14].
Enquanto os agentes do sistema rompem leis e direitos que garantem a manifestação e moradia, por exemplo, aqui em Porto Alegre, seis influentes militantes estão sendo processados por formação de milícia, em uma clara tentativa de reprimir o direito à resistência[15] [16]. No nosso vídeo-documentário, podemos ver que até o “doutor Péricles” ficou sem palavras ao tentar resgatar em seu doutoral conhecimento elementos que justificassem a selvageria que somente as normas podem assegurar serem civilizadas.
Corremos, corremos e corremos; lutamos, lutamos e lutamos para finalmente chegamos bem aqui: à barbárie. A Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa e Olimpíadas (ANCOP), ancorada em trabalhos realizados em parceria com a Repórter Brasil e a ONG britânica Institute for Human Rights and Business, estima que entre os crimes da Copa estão milhares de famílias removidas ou expulsas de suas casas e territórios para a construção de estádios, avenidas, estacionamentos ou shoppings, dentre outras tantas violações dos direitos humanos[17][18]. Além disso, nesse processo, a criminalização dos movimentos sociais e o acirramento da violência institucional cometida pelos aparelhos repressivos do Estado vêm tornando-se fatos cotidianos [19][20][21]. A banalização do mal nossa de cada dia. Até a subserviência da polícia às corporações conseguiu tornar-se ainda mais explícita com a chegada da corporação FIFA e seus patrocinadores[22][23]. Não é por acaso que na votação para escolher a pior corporação do ano – concurso realizado todos os anos pelo do Public Eye Awards (“Nobel” da vergonha corporativa mundial) – a FIFA ficou em primeiro lugar no Brasil e em terceiro lugar em nível internacional[24][25].
A Copa FIFA 2014 no Brasil é a Copa das Copas[26]? Não sei. Talvez seja. Que bom que fosse. Que lindo seria abrirmos as portas do nosso país para recebermos povos, cultos e culturas estrangeiras, estranhas, forasteiras. Que bom que pudéssemos pensar no Outro como exterioridade, não como colonizável, comercializável, usurpável. Que fantástico seria o esporte fazendo convergir a diversidade. Que incrível seria se fosse o gol – ao invés do Napalm – o único instrumento de vitória. Que lindo seria fazermos da pluralidade um meio de produzirmos nossa singularidade. Que fantástico se somente a bola – e não o petróleo e a natureza – fossem instrumentos de cobiça. Que lindo seria a paixão ao invés do merchandising. Que maravilhoso seria… Mas é?
Eu imagino uma Copa das Copas em que a elite pudesse vaiar não a qualidade deplorável das áreas VIP’s dos estádios, mas sim o fato de os operários que construíram esses lindos coliseus só poderem ver os jogos de seus casebres na periferia [27]. Que bom seria se nessa Copa, a “Copa de todo mundo”[28], não houvesse o sangue e suor de trabalho escravo[29]. Eu imagino uma Copa das Copas em que os territórios em torno dos estádios fossem espaços de encontro, não de exceção[30]. Eu imagino uma Copa das Copas que não sirva para gerar riqueza, mas para enriquecer o povo. Eu imagino uma Copa das Copas como um lugar onde se possa inventar e ensinar uma Democracia, uma democracia democrática, não a das armas e dos batalhões de Choque. Eu imagino uma Copa das Copas em que as mulheres não sejam a mercadoria em jogo[31]. Eu imagino uma Copa das Copas em que as mobilizações não sejam reprimidas, mas incentivadas, afinal, queremos expor ao mundo o “nosso” Brasil, o Brasil de “todo mundo”. Será mesmo que é assim?[32].
Onde está esse Brasil? O Brasil que eu conheço cheira a sangue e gás lacrimogêneo[33]. O Brasil que eu conheço procura até hoje seus Amarildos. No Brasil que eu conheço, a pobreza continua sendo uma questão de polícia. No Brasil que eu conheço, a miséria – não só a econômica – ganha de goleada. Mas o Brasil que eu conheço, não é o Brasil de todo mundo, porque muita gente – no Brasil que eu conheço –, só pode conhecer o “Brasil de todo mundo” através do que 11 famílias – que controlam os meios de comunicação públicos – querem que seja o Brasil[34] [35]. Por isso, no Brasil que eu conheço, só há dois brasis: um da vaia e o outro da Copa das Copas. Porque no Brasil que eu conheço só há duas formas de pensar: ou a favor ou contra; ou certo ou errado; ou pacífico ou vândalo. Enfim, no Brasil que eu conheço só a mídia marca gol de placa.
Pra mim, a Copa do mundo que o mundo perdeu em Porto Alegre, essa sim é a Copa das Copas[36]. Porque atrás das cortinas sempre há algo que não esvanece, algo que permanece mesmo quando as vuvuzelas e alegrias forem novamente substituídas pelo som dos automóveis agressivos e apressados ou pela violência e hostilidade de cada um que tenta matar para sobreviver. A Copa que o mundo perdeu continua[37]. Mesmo quando a outra Copa for embora – a Copa pequena e passageira – o legado da Copa do mundo que o mundo perdeu em Porto Alegre permanecerá: continuarão morrendo os filhos e filhas de Sheilas, homens e mulheres, Zés e joãos esquecidos e expulsos para um canto qualquer de tantas Faixas de Gaza espalhadas aqui e acolá[38] [39] [40] [41].
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[1] [ANCOP: Copa para quem? |LEG: ESP/ING/ALE/ITA/POR] https://www.youtube.com/watch?v=HmoLZBtqQ3c
[2] [ESPN: Desapropriação das obras da copa] https://www.youtube.com/watch?v=YqZlmgsmmXE
[3] [MEMÓRIA LATINA: Marcha de movimentos sociais de Abertura da Copa no Rio de Janeiro|LEG: ESP/POR] https://www.youtube.com/watch?v=m3o6_xFbxa4&feature=youtu.be
[4] [ANTROPOTV: FIFA GO HOME! O Mundial desde Porto Alegre] https://vimeo.com/98370600
[5] [Don’t come to Brazil |LEG: ESP/ING/POR] https://www.youtube.com/watch?v=Vrr0gLHWKrA
[6][Yes, you can still go to the World Cup – IF |LEG: ESP/ING/POR] https://www.youtube.com/watch?v=-8Zrxr8r-fY
[7] [Filme: “A PARTIR DE AGORA – As jornadas de junho no Brasil”] https://www.youtube.com/watch?v=3dlPZ3rarO0
[8] [TVFOLHA: A copa VIP dos “Yellow Blocs” |LEG: ESP/POR] https://www.youtube.com/watch?v=0Zkp1C9ucrc
[9] [VEJA: Os 10 mandamentos do rei do camarote] https://www.youtube.com/watch?v=atQvZ-nq0Go&feature=kp
[10] [TVFOLHA: Repórteres falam como a brutalidade policial marcou o último protesto (2013)|LEG: ESP/ING/POR] https://www.youtube.com/watch?v=W6QVLE8PQJ8
[11] [PM atira em manifestantes que pediam não violência (2013)] https://www.youtube.com/watch?v=u3-PWM9uuGI
[12] [Manifestante desarmado se coloca na frente do Choque (2013)] http://www.youtube.com/watch?v=ZqBq2RSwKCQ
[13] [Manifestantes contrários à Copa são agredidos em Porto Alegre (2012)] http://www.youtube.com/watch?v=MHJ_lAoI_0g
[14] [PM de Porto Alegre prende pessoas por gravarem violência policial |LEG: ING/POR] https://www.youtube.com/watch?v=80fxj6jfQBI#t=21
[15] [PÚBLICA: No Rio Grande do Sul, juiz instaura processo contra manifestantes] http://apublica.org/2014/06/no-rio-grande-do-sul-juiz-instaura-processo-contra-manifestantes/
[16] http://jornalismob.com/2014/05/16/bloco-de-luta-divulga-carta-aberta-sobre-denuncia-criminal/
[17] http://www.megasportingevents.org/pdf/Reporter-Brasil-MSEs-Human-Rights-Risk-Areas.pdf
[18] http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=586:carta-do-i-encontro-dos/das-atingidos/as
[19][On the Outside of the Stadiums – Brazil 2014] https://www.youtube.com/watch?v=M_yys4zyfEo
[20] [Violado o direito de protestar em Porto Alegre] http://vimeo.com/98591837
[21][PM do Rio espanca manifestantes no Ato Fifa Go Home] https://www.youtube.com/watch?v=oF96qtMs-ew
[22] [Recorte de muitos vídeos mostrando a violência institucional no país] http://vimeo.com/82389104
[23] [Mas que Copa?!] https://www.youtube.com/watch?v=uFYB4cgpUOk
[24] http://publiceye.ch/en/case/fifa/
[25] https://amigosdaterrabrasil.wordpress.com/2013/11/26/por-que-apoiamos-a-campanha-fifa-a-pior-corporacao-do-ano/
[26] [GOVERNO FEDERAL: Propaganda da Copa das Copas] https://www.youtube.com/watch?v=c7otMhcGdv8
[27] [Para mim, Copa não existe’, diz mãe de operário morto na Arena Corinthians] http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/06/140623_mae_operario_copa_wc2014_lgb.shtml
[28] [COCA-COLA: Propaganda da Copa de Todo Mundo] https://www.youtube.com/watch?v=u-tp3SwitMY
[29] http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/06/140616_mp_denuncia_odebrecht_jf.shtml
[30] [Coronel da PM de Minas Gerais afirma que “o entorno do Mineirão é território FIFA”] https://www.youtube.com/watch?v=U65RQ1_rqok
[31] [CATARSE: Ato das mulheres na Vila Tronco contra a Copa] https://www.youtube.com/watch?v=vH2h_K1Ah4I&list=TLPLSHMSZ2ZId9PsF_uJTDI6A_oky23kh6
[32] [CATARSE: Choveu bomba em Porto Alegre (2013)] https://www.youtube.com/watch?v=yhKkpCAiY5w
[33] [PM joga bomba de gás lacrimogênio dentro de apartamento de pessoas que olhavam a manifestação em São Paulo (2013)] https://www.youtube.com/watch?v=lUIQJQloJlI
[34] [INTERVOZES: A Verdadeira história da mídia brasileira] https://www.youtube.com/watch?v=KgCX2ONf6BU
[35] [Canal argentino debocha da hipocrisia dos meios de comunicação brasileiros] http://www.youtube.com/watch?v=lTHtk3CGOrc
[36] [Os Estrangeiros da Vila Tronco |LEG: ING/POR] http://www.youtube.com/watch?v=Cj34SZpRhxE
[37] [CATARSE: Bloco de Luta e Comitê Popular da Copa na Vila Cruzeiro] https://www.youtube.com/watch?v=FS_f_sRUX9I
[38] [ESPN: À Beira da Copa num Porto pouco Alegre | Parte I] http://www.youtube.com/watch?v=I0g_ynaskr4
[39] [ESPN: À Beira da Copa num Porto pouco Alegre | Parte II] http://www.youtube.com/watch?v=sbjEGceHjmA
[40] [ESPN: À Beira da Copa num Porto pouco Alegre | Parte III] http://www.youtube.com/watch?v=SodzvALBR0M
[41] [ESPN: À Beira da Copa num Porto pouco Alegre | Parte IV] http://www.youtube.com/watch?v=dHB9IJkzCNo
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